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Tem um dia a dia que continua.

entre os afetos colaterais,

entre os exames e os hospitais,

tem a vida após o laudo,

que nem sempre rima.

mas não tem dia de descanso,

 ​nem reembolso de consulta.

 Nem só ressaca, nem só mar manso.

 Não tem estrada que não bifurca.

  Tem dúvidas de si mesmo.  

 Tem rezas pra todos os santos. 

  Tem o prato em que apeteço  

 e os buracos que nunca tampo.​

Dentro das caixas tem remédio.

E tem noites mal dormidas,

tem distâncias percorridas. 

Paranoia e tédio.

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Roberto Ulhoa

Essa  coleção de trabalhos que desenvolvo desde 2012. São obras feitas sobre papel, na parte interna das embalagens dos medicamentos que tomo e que, quando abertas, tomam forma de cruz.

Os trabalhos dentro das caixas começam junto com as inseguranças, fragilidades e perturbações de se compreender como sujeito, ao mesmo tempo que buscam festejar a manutenção da autonomia, e da esperança.

Assim, cada caixa pintada vira uma bandeira em forma de cruz. Estandarte de si.

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“A arte pode nos lembrar o lugar legítimo que o sofrimento tem em uma boa vida, para sentirmos menos pânico com as dificuldades, reconhecendo-as como parte de uma experiência válida.

- Na arte, as dores e tristeza encontram um lar digno.”

Alain de Botton & john Armstrong

Essas pinturas, acima de tudo, eu faço pela intimidade comigo mesmo que pintar me proporciona.

65cm

60cm

Esse trabalho é o resultado de uma pesquisa na busca de uma linguagem capaz de tornar visível questões psicológicas que surgem em função da minha relação com essa doença. Não é especificamente sobre estar doente. É mais sobre investigar como esse espaço interior está sendo vivenciado. É mais sobre estar vivo e ter medo do que pode acontecer, de como vai acontecer.

Não são dicas pra quem tem a doença, nem ajuda para enfrentar. São constatações, experiências , fantasias, indícios, devaneios e exageros. 

​E uma documentação psiquica. Narrativas de alguém que experimentou uma ruptura temporária com a realidade,  e o impacto disso.

O processo de alinhamento de expectativas, reconhecimento e ressignificação de crenças. 

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É uma busca, no espaço da arte, de reviver momentos de crise e revisitar fantasias. Apenas olhando mais como um expectador de si mesmo, que analisa de uma distância fotográfica o passeio pelo vale das sombras, em busca de compreensão, informação e recursos que possam diminuir o peso na culpa da sobrevivência, de  contornar a angústia, e a ansiedade pelo que ainda está por vir.

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​​Nesse contexto, a sombra a qual me refiro é uma parte de si que o sujeito não consegue acessar de outra forma que não por mecanismos psicológicos. São necessários rememorações conscientes e interpretações  inconscientes para alcançar os marcos e registros do que aconteceu.  É um conteúdo borrado forjado de memórias, amplificadas por afetos, que nunca serão um conteúdo latente puro e isento emanações pessoais.


​​​Esse entreposto, caixa preta, é uma confluência entre a realidade do que aconteceu e as lembranças na forma que guardamos, criamos e projetamos . ​Pensamentos datados mas que manifestam sua complexidade no presente vivo​.  Abrigam os gatilhos do medo e da insegurança, um lugar enigmático, de onde surgem os pensamentos intrusivos, contagiosos, que causam as noites mal dormidas. Um lugar fácil de entrar mas difícil de sair.  

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Nesse campo mental, que às vezes é obscuro, e dolorido pra o próprio habitante é que através da pintura e associações pictóricas me sinto mais a vontade, mais íntimo de mim,  para tentar  alcançar a riqueza desse conteúdo. O qual, de outras formas, sinto falta de um vocabulário satisfatório capaz de fazer essa tradução, na busca de uma Poética que tenta responder a provocações que sou conduzido nessa relação diária.

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As Caixas de Remédio usadas como suporte, quando  desmontadas  e pintadas, se tornam uma cruz.

Não a cruz do fim,  A cruz transformada em um estandarte de quatro pontas, símbolo dessa jornada. Bandeira de um auto descobrimento.

Assim, cada estandarte que se levanta, carrega em conjunto mais um mês de tratamento, escreve mais uma carta para o sujeito que continuará por vir, escava um pouco mais o solo em busca de evidências,  desvela alguns mistérios. Remenda palavras com imagens. Delimita o estado do ser, circunscrito aos  limites da carne.  

Na práticas as pinturas relatam momentos pinçados em um emaranhado de vivências originadas de acontecimentos interiores

Falam de mudanças de conduta ou de postura frente a esse contexto de ruptura corpo e mente e os efeitos que resultam disso.  Da dificuldade de equalizar expectativa e realidade.  De descobertas, de rompantes de raiva, de esclarecimento, de autoconhecimento. De fé. Da própria forma de compreensão do tempo, não apenas como um algoz, que deve ser evitado, mas também como um aliado.  

A linguagem se potencializa na familiaridade da figuração para produzir formas com efeito de presença e conexão, mas se desconecta dos códigos usuais. Presta-se mais a dar imagem e ambiência a segredos pessoais.

"...do mesmo modo que na empatia o indivíduo inconscientemente encontra prazer nos seus próprios sentimentos projetados sobre o objeto,

na abstração, sem saber o individuo está contemplando a si mesmo quando

se aterroriza com a impressão que o objeto faz sobre ele."

C.G. Jung

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a relatividade do visual tornou-se evidência e já se concorda em ver nas coisas reais apenas um aspecto particular da totalidade do universo onde existem inumeráveis verdades latentes.

Paul Klee

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